Em 1964 as principais manchetes foram estas:

Um republicídio brasileiro: vitória da superstição

Conscientização negra gera frutos

Vietnã, uma guerra não-declarada

O poder se divide na União Soviética

A Índia chora a perda de seu líder

Dançarino bate o grande urso feio

Imagens ao vivo e dramas humanos

Faroeste italiano vira obra de arte

Surge o gênio do cinema novo
A essência sonora de John Coltrane

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1964

Um republicídio brasileiro: vitória da superstição

Na manhã do dia 1º de abril de 1964 na esquina da Rua Joaquim Nabuco com a Avenida Atlântica, no então bucólico Posto Seis, na Praia de Copacabana, Rio de Janeiro, um coronel do Exército salta de um Citroen preto e caminha em direção ao sentinela que guardava a entrada do Forte de Copacabana. A bofetada no rosto do praça eliminou um dos supostos focos de apoio ao presidente João Goulart, a essa altura politicamente desenganado. O jornalista Carlos Heitor Cony, em uma crônica memorável publicada no dia seguinte, lembra ainda a preocupação do referido oficial em colocar dois paralelepípedos no meio da então única pista da Avenida Atlântica: "Precisamos parar os tanques do Exercito!" O Exercito não apareceu. Na verdade, ele reuniu-se aos demais Exércitos e a Marinha e a Aeronáutica para iniciar o experimento que pôs fim a República de 1946. Os paralelepípedo s, inúteis, foram separados pelo próprio Cony, sem qualquer esforço, em um leve movi mento com a ponta do pé. Mas, ao contrário dos paralelepípedos de Cony, duros e objetivos como a verdade deve ser. os acontecimentos de 1964 estão sujeitos a dissipação e a plasticidade. Lembrá-los hoje significa transitar por um insolúvel conflito de interpretações. Conflito que abriga ainda, a dúvida sobre quais são e quando começaram os eventos causadores? Thomas Mann, em "José e seus irmãos", já nos advertia: "É muito fundo o poço do passado". Até onde, portanto, devemos retroceder? Há quem sustente que o movimento que de pôs o presidente João Goulart, em 1° de abril de 1964, só pode ser legível se fizermos uma espécie de arqueologia do comportamento militar no Brasil. Arqueologia cujos sinais remontam a Guerra do Paraguai e deságuam no envolvimento com a modernização autoritária e com o anticomunismo feroz dos anos 30, 40 e 50. Essa naturalização do "componente militar", nesse efeito de datação longa, faz da ordem do histórico a ponta aparente de maquinações urdidas em segredo. Conspiradores obsessivos, mentes simplórias, nulidades notáveis e ressentidos em geral acabam sendo agraciados com a prerrogativa do protagonismo, e adotados por um gênero literário que os enobrece: o das memórias e depoimentos, espécie brasileira de "lavagem de biografia".

Em outra chave, os acontecimentos de 64 podem ser percebidos, sem qualquer fatalidade, como resultantes do próprio ambiente político da primeira metade dos anos 60. Mas para o bem ou para o mal, a distância confere grandiosidade aos eventos. É como se um evento julgado grande só pudesse ter grandes causas e grandes e intencionais conseqüências. O movimento de 1964, no entanto, não escapou à trivial circunstância de que se os homens fazem a História a fazem tomados por incurável miopia, já que o futuro sempre foi o domínio da inescrutabilidade.

Os militares que deflagraram o movimento eram parte de uma coalizão com forte apoio civil, do centro até a extrema direita. Parte dessa frente era composta por conspiradores contumazes, inadaptados as instituições democráticas criadas com a Republica de 1946 ("populista", segundo jargão paulista). Suas impressões digitais estão visíveis na crise que levou o presidente Getúlio Vargas ao suicídio em agosto de 1954, na tentativa de impedir a posse de Juscelino, em 1955, nos levantes de Aragarças e Jacareacanga e no veto interposto em 1961 ao então vice-presidente João Goulart. Mas havia também uma legião de políticos e militares moderados, preocupados com o clima de radicalização política no país e com sinais de que o próprio Governo Goulart tinha vínculos pouco ortodoxos com a legalidade constitucional.

Descontada a linha dura—representada pelo então auto nomeado Ministro da Guerra e futuro presidente general Arthur da Costa e Silva—os líderes do movimento pretendiam mover-se nos limites do regime de 1946. Tome-se o exemplo de Carlos Lacerda, governador do estado da Guanabara, um dos mais extremados opositores de Goulart, mas ele mesmo candidato a eleição presidencial de 1965. Para ele, no mínimo, o calendário eleitoral deveria ser mantido: grave miopia, posto que as diretas já de 65 foram suprimidas e Lacerda e Juscelino, os favoritos, acabaram cassados. Entre os principais protagonistas circulava a certeza—em parte pueril e em parte inautêntica— de que tratava-se de uma intervenção para "salvar a democracia".

Mas qualquer avaliação de eventos passados deve ultrapassar a análise das intenções. A pergunta, portanto, e a seguinte: o que o regime de 1964, capturado, e ele mesmo responsável, por uma espiral autoritária, proporcionou ao país? Qual foi a sua natureza? Duas características, creio, podem ser detectadas:

1. O movimento de 1964 foi um evento republicida.

2. O experimento social dele decorrente foi marcado pela erosão da malha de proteção política da sociedade.

O caráter republicida pode ser atestado se lembramos da "Republica que a Revolução destruiu". O Brasil, em 1946, de modo efetivo "proclamou" a Republica. Explico: entre 1946 e 1964 vivemos nossa primeira experiência democrática desde 1500, com alguns de seus componentes básicos: eleitorado de massa, eleições regulares, sistema partidário competitivo, implantação de um sistema representativo consistente e pluralista, federalismo, diversidade política regional, etc... O movimento de 1964, em poucos anos, elimina a principal característica e virtude da República de 1946: a da possibilidade da representação política de parte importante do país, em sua diversidade e complexidade. Isso se deu graças a extinção dos partidos do regime de 1946, à erradicação de parte importante da classe política, a drástica redução do peso do voto popular no sistema decisório e ao longo recesso da liberdade política imposto ao país.

A isso somou-se o fato de uma sociedade. em vinte anos, submetida a combinação entre modernização econômica vertiginosa, deslocamentos espaciais, predacao ambiental. dilaceração de identidades sociais, urbanização descontrolada e desconsideração completa de custos humanos e sociais, na busca dos chamados "interesses nacionais". Ou seja, trata-se do predomínio puro da esfera econômica sobre a vida social, sustentado em doses sensíveis de autoritarismo e truculência.

A política, pela coação e pela pusilanimidade, foi posta a serviço dessa razão de estado obcecada pela modernização econômica, sem que a sociedade tivesse a sua disposição quaisquer mecanismos de proteção, de expressão ou de representação políticas. Os meios disponíveis para tal foram totalmente eliminados pelo republicídio de 1964, o país viveu anos de uma perversa combinação: crescimento a qualquer custo com ausência de democracia política.

As bases doutrinarias da precedência da razão econômica sobre a democracia política já estavam postas nos anos 50. Trata-se da linguagem dos "obstáculos políticos ao desenvolvimento". A superstição antidemocrática foi reconstituída em 1974 pelo economista Roberto Campos, ex-ministro do Planejamento, em sua definição do regime de 1964 como um "autoritarismo consentido" (sic), caracterizado pela adesão "inconsciente ou subconsciente" da população a um padrão de maior "disciplina social", em detrimento da "exaltação democrática". (É reconfortante aqui lembrar dos resultados das eleições de novembro de 1974, a primeira derrota eleitoral do regime de 1964 em escala nacional. Mas, cetico que sou, sei que superstições não são refutadas por fatos). Foi uma superstição que sustentou o regime de 1964: a de que a política democrática é inimiga da disciplina social e do progresso e é um poderoso agente de irracionalidade política.

O principal legado do regime é o do predomínio de um economicismo difuso e de uma desvalorização generalizada da política e das instituições. Afinal, passados tantos anos, a linguagem do imperativo da modernização econômica e dos obstáculos políticos e institucionais ao desenvolvimento está viva. O regime de 1964 é um experimento vitorioso e tem suas superstições cuidadosamente mantidas pela coalizão entre derrotados e vitoriosos de 1964 que hoje nos governa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1964

Conscientização negra gera frutos

A Declaração de Independência dos Esta dos Unidos diz que "todos os homens nascem iguais e com os mesmos direitos à vida, a liberdade e à busca da felicidade", mas só com a aprovação da Lei dos Direitos Civis, em 2 de julho de 1964, a luta dos negros americanos contra a discriminação racial forçava a nação a ver que eles estavam incluídos naquele "todos" da Declaração.

Assinada pelo presidente Lyndon Johnson, tendo ao lado Martin Luther King, a Lei era se uma versão ampliada do projeto inicialmente proposto por seu antecessor, John Kennedy. Ela tornava ilegal a discriminação por parte de empregadores e sindicatos e a segregação em escolas e hospitais. Estavam previstas sérias punições, inclusive o corte de verbas federais nas áreas de educação e saúde para estabelecimentos que mantivessem as antigas praticas racistas. A legislação também criou a Comissão para Oportunidades Iguais de Emprego, que passou a investigar casos de discriminação em locais de trabalho.

Era o resultado de um movimento de conscientização dos negros americanos visando acabar com os mais de dois séculos de discriminação amparada em leis federais e estaduais. A segunda metade dos anos 50 tinha sido marcada por boicotes e protestos nos quais os negros lutaram por seus direitos. Mas o início dos anos 60 trouxe mais organização e penetração para o movimento, em boa parte pelos esforços do líder político e religioso Malcolm X. Em 1962 e 1963, ele realizou uma maratona de palestras em universidades e discursos públicos, e escreveu artigos de jornal nos quais pregava orgulho racial aos negros. Defensor do chamado nacionalismo negro, Malcolm X era encarado não só como líder mas como exemplo, a prova de que um negro pobre e conduzido ao crime podia tomar o controle da própria vida, educar-se e assumir lugar de destaque nos Estados Unidos.

No início dos anos 60, manifestantes de todo o país se engajaram na campanha pelo fim da discriminação, que era bem pior no Sul, povoado de placas que impediam a entrada de negros em restaurantes, escolas, teatros, bares, parques e zoológicos. Os que se atreviam a entrar eram barrados, correndo o risco de linchamento. Uma luta fundamental no Sul era pelo direito de participar de eleições. Nos 12 estados segregacionistas só havia 100 mil eleitores filiados, para mais de cinco milhões de negros em condições de votar.

Com a nova lei, isso começou a mudar, embora até o final da década, a luta dos negros por um lugar digno na sociedade americana ainda fosse sofrer violentos reveses, como os assassinatos de seus dois maiores líderes: o pacifista Martin Luther King, em 1968, e o radical Malcolm X, em 1965.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1964

Vietnã, uma guerra não-declarada

Em 7 de agosto de 1964 o Congresso americano aprovou quase por unanimidade a Resolução do Golfo de Tonkin, assinada em seguida pelo presidente Lyndon Johnson, que autorizava os Estados Unidos a intervir militarmente no Vietnã sem a necessidade de uma declaração formal de guerra. O documento ganhou o nome do golfo onde dois navios de guerra americanos teriam sido atacados sem provocação por norte-vietnamitas cinco dias antes. No entanto, em 1971, a imprensa americana teve acesso a documentos do Pentágono que revelavam que navios americanos já vinham atacando os norte-vietnamitas antes do incidente de Tonkin.

Dois dias antes de conseguir a aprovação do Congresso para tomar "todas as ações necessárias" contra as forças norte-vietnamitas comandadas por Ho Chi Minh, o presidente Lyndon Johnson já havia autorizado um ataque de retaliação. Biógrafos do presidente afirmam que ele não queria entrar para a História como o homem que "perdeu" o Vietnã para os comunistas. Em 1964, metade do país já havia sido tomado pelos vietcongues e a estratégia americana de enviar instrutores e conselheiros militares—já eram 16 mil então —para treinar as tropas do Vietnã do Sul não parecia estar funcionando. Além do apoio militar e financeiro, havia ainda o pessoal enviado para a construção de portos, campos de pouso e bases.

Num primeiro momento, a ação contra o Vietnã popularizou Johnson. Em novembro de 1964, ele venceu as eleições presidenciais derrotando o senador Barry Goldwater pela maior margem já registrada nos Estados Unidos. No início de 1965, Lyndon Johnson enviou o primeiro lote de 3.500 marines, os fuzileiros navais americanos, que combateria os vietcongues. O presidente e os estrategistas das Forças Armadas acreditavam que as tropas guerrilheiras comandadas por Ho Chi Minh não resistiriam por muito tempo em combate direto com os soldados americanos.

No entanto, até o final de seu mandato, Johnson já havia enviado meio milhão de soldados para o Vietnã. Estima-se que na época as Forças Armadas americanas já haviam usado no pequeno país uma quantidade maior de bombas do que a empregada pelos aliados durante a Segunda Guerra. Em 1968, Johnson não concorreu a reeleição e Richard Nixon se elegeu presidente com a promessa de acabar com a Guerra do Vietnã.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1964

O poder se divide na União Soviética

Só depois da morte de Nikita Kruchov seu filho Serguei revelou que o pai sabia que estavam conspirando para tirá-lo do comando supremo da URSS, que ocupava desde 1955, mas como já estava com 70 anos e procurava um sucessor, deixou o barco correr. Serguei narrou os detalhes do que parece roteiro de filme de espionagem. Numa madrugada do final de setembro de 1964, o filho recebeu o telefonema do guarda-costas de Nikolai Ignatev, antigo membro do Politburo afastado por Kruchov três anos antes. O guarda costas avisou que seu chefe e mais outros dois integrantes do Politburo, Brejuev e Podgorny, o diretor da KGB, Semichastny, e o secretário do PC, Shlepin, queriam dar um golpe.

Kruchov aparentemente não acreditou e viajou com a família para sua casa de campo, na Crimeia. Em 13 de outubro, voltou correndo para a capital, pois fora convocado por Mikhail Suslov, ideólogo do Kremlin, para uma reunião de emergência sobre agricultura. Mas a reunião acabou se revelando um julgamento. Kruchov teve de ouvir, principalmente de Suslov. uma série de acusações, incluindo grosserias com os colegas, nepotismo e má administração da economia. O secretario geral do Partido Comunista e líder da URSS tentou argumentar, mas acabou cedendo. À meia-noite concordou em renunciar "voluntariamente". Leonid Brejnev assumiu a direção do partido e Alexei Kossiguin a chefia do Governo, repartindo o poder. Afastava-se um homem carismático, polêmico e contraditório, que acertara tanto quanto errara: denunciou os desmandos de Stálin, fortaleceu a "coexistência pacífica", libertou presos políticos, mas pôs (e depois retirou) mísseis em Cuba, esmagou a tentativa de libertação da Hungria, mandou construir o Muro de Berlim e rompeu com a China de Mao Tse-Tung.

O epitáfio político de Kruchov viria dias depois no jornal "Pravda". Sem citar nomes, o órgão oficial do partido falava das razões da mudança, referindo-se a "vacilações', "conclusões pueris" e "decisões precipitadas", entre outros. O nome do ex-chefe desapareceu da segunda edição da "História do Partido Comunista da URSS", publicado depois de sua queda, e quando ele morreu de ataque cardíaco em 11 de setembro de 1971, foi enterrado no cemitério Novodevich, reservado aos camaradas que caíram no esquecimento oficial.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1964

A Índia chora a perda de seu líder

Quando, na manhã de 27 de maio de 1964, o ministro do Aço, C. Subramaniam, anunciou no Parlamento indiano a morte de Nehru—"O primeiro-ministro não existe mais. A luz se apagou"—e a notícia correu, o país parou. Ninguém queria acreditar que desaparecera o sucessor do idolatrado Gandhi, ao lado de quem lutara por 30 anos até conseguir a independência da Índia, em 1947, e comandá-la desde então com voz mansa e mão firme, tendo o apoio, o carinho e o respeito do povo.

Jawaharlal Nehru—que receberia a certa altura da vida o direito de antepor ao nome o honroso titulo de Pandit, "mestre"—nasceu em Allahabad em novembro de 1889, filho de um importante advogado da casta dos brâmanes, a mais elevada entre todas na Índia. Foi adolescente para a Inglaterra, voltando advogado em 1912, para trabalhar com o pai, mas apenas por pouco tempo. Sua verdadeira vocação iria surgir ao conhecer Gandhi, já em plena luta pacífica contra o domínio britânico, numa reunião do Partido do Congresso Nacional Indiano, em 1916. Filiou-se e sofreu a primeira prisão em 1921 (até 1945 seriam oito, somando mais de nove anos de cadeia). Tornou-se presidente do partido em 1929 e em meados da década de 30 era considerado o herdeiro natural de Gandhi.

Com a independência, em 1947. Nehru assumiu o cargo de primeiro-ministro e começou a mexer na velha Índia. Adepto da não-violência como útil arma política, resolveu satisfatoriamente as pendengas com o muçulmano Paquistão e adotou uma posição neutralista, o não-alinhamento, em relação as grandes potências, o que não evitou disputas territoriais com a China no meio dos anos 50. Diferentemente de Gandhi, mais dedicado a reviver as glórias da antiga civilização indiana, Nehru queria fazer o país entrar no século XX: uma moderna constituição foi concluída em 1949. Houve um início de reforma agraria—o primeiro ministro, a despeito da origem aristocrática, tinha um pensamento econômico basicamente atrelado a doutrina socialista.

Depois de 17 anos atuando como líder do majoritário Partido do Congresso, guia da nação e estadista de cunho internacional, Nehru sofreu um enfarte fatal. O corpo foi cremado no dia 29 às margens do Rio Jumna, após dois dias de visitação pública em sua casa de Nova Delhi, numa interminável e democrática fila que alinhava altos funcionários, diplomatas do mundo inteiro, políticos, príncipes, camponeses de turbante, monges budistas de vestes amarelas e mendigas de vestes esfarrapadas carregando no colo os filhos nus.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1964

Dançarino bate o grande urso feio

"Eu odeio esse urso velho, grande e feio." O desafio de Cassius Marcellus Clay ao ex-presidiário e campeão dos pesos-pesados Sonny Liston já continha o tom provocativo que se tornou marca registrada. Em 25 de fevereiro de 1964, Clay, aos 22 anos, subia no ringue para enfrentar um oponente maior, mais forte e mais experiente, porém menos ágil e menos inteligente. A maioria dos 8.927 espectadores duvidava que Clay passasse do primeiro assalto e poucos viram o soco com que o desafiante derrubou Liston no sexto round: foi rápido demais. Mas todos viram assombrados quando o campeão, reclamando de dores, se recusou a subir no ringue para o sétimo assalto.

Liston era o franco favorito por sete contra um na bolsa de apostas e o vitorioso Clay foi a forra: "Agora comam suas palavras. Ajoelhem-se diante de mim". Seu primeiro título mundial iniciou a era do boxe espetáculo, estrelada por aquele que "voava como uma borboleta e picava como uma abelha". Tempos depois, o treinador de Clay falou sobre essa luta: "Alguns pugilistas desmoronam quando Clay começa a ameaçá-los, fazer palhaçadas, versinhos e previsões. Liston já estava mentalmente derrotado antes de entrar no ringue".

Quando estreou como profissional, em outubro de 1960, Clay acabara de conquistar a medalha de ouro nas Olimpíadas de Roma, tendo acumulado 102 vitórias em 108 combates amadores. Em 61 lutas profissionais, perdeu apenas cinco. No mesmo ano do primeiro título mundial, Clay anunciou sua conversão ao islamismo e mudou o nome para Muhammad Ali. Em 1967 foi proibido de lutar e teve seus títulos anulados por se recusar a servir o Exército por motivos religiosos. A Suprema Corte anulou as punições em 1970, mas Ali perdeu a primeira tentativa de reconquistar a faixa para Joe Frazier e dobrou-se ante Ken Norton, em 73. Em 1974, arrasou Frazier e recuperou o título contra George Foreman. Sem mostrar a agilidade do passado, Ali dobrava os braços e se fazia de alvo, fazendo o adversário queimar energias contra sua defesa. Foreman bateu tanto que se cansou e perdeu por nocaute. Muhammad Ali acabou encontrando seu maior adversário no Mal de Parkinson, doença agravada pelo muitos murros recebidos ao longo da brilhante carreira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1964

Imagens ao vivo e dramas humanos

Tóquio se candidatava a sede das Olimpíadas desde 1940, mas a Segunda Guerra Mundial suspendeu duas edições dos jogos. O de 1964 seria uma excelente oportunidade de apresentar uma nova nação ao mundo. O Japão gastou US$ 3 bilhões, a cidade foi reformada, a população ensinada a sorrir para os turistas e a aplaudir muito cada jogada, numa euforia bem-comportada. Mesmo assim, houve uma sutil provocação: a tocha olímpica chegou ao estádio, em 10 de outubro, pelas mãos de Yoshinori Sakai, atleta nascido em Hiroshima no dia em que a bomba atômica foi lançada sobre a cidade, 6 de agosto de 1945.

A Coréia do Norte decidiu não ir, mas os japoneses pagaram a do Sul para que ela mandasse seus times de vôlei. Assim o país-sede garantiu a realização do torneio, a medalha de ouro (no feminino) e a de bronze (no masculino). A ginástica se consolidou, encantando o público de todo o mundo que, pela primeira vez, assistia as Olimpíadas ao vivo, via satélite. Outra novidade foi o cronômetro eletrônico. Na guerra fria das medalhas, os EUA levaram 36 de ouro contra 30 da URSS. O Japão conseguiu 16 e ficou em terceiro.

Muitos veteranos mantiveram seus recordes: Ababe Bikila, da Etiopia, tornou-se o primeiro a vencer duas maratonas seguidas. O discóbolo americano Al Oerter, a nadadora australiana Dawn Fraser e o remador soviético Vyachesalav Ivanov foram tri-campeões. O Brasil levou 68 atletas e voltou com uma medalha de bronze, no basquete masculino.

O americano Dick Roth virou herói. Internado ás vésperas da prova, desmarcou a cirurgia urgente, caiu n'água e bateu o recorde mundial nos 400m quatro estilos. Com a medalha no peito, voltou ao hospital e retirou o apêndice. Furiosa com o quinto lugar no lançamento de dardo, a soviética Elvira Ozolina, campeã em Roma, saiu da pista direto para o cabeleireiro e raspou a cabeça. Depois, vagou pela Vila Olímpica, numa prova de autopunição sem barreiras. Já o japonês Kokichi Tsubaraya ficou em terceiro na maratona e, diligente, logo começou a treinar para 1968. Três anos e duas contusões depois, teve que ser hospitalizado. Ao sair, sentiu que jamais correria como antes e, a nove meses dos jogos no México, cortou a carótida com uma gilete.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1964

Faroeste italiano vira obra de arte

Em 1962, a Europa começou a fazer faroestes, filmes alemães rodados na Iugoslávia. A moda pegou e em 1964 umas duas dúzias de filmes do gênero foram produzidos na Itália, na Espanha e na Alemanha. Um destes se destacou pelo estilo refinado e pela trama diferente "Por um punhado de dólares" era a primeira incursão no gênero do diretor romano Sérgio Leone, de 35 anos, e representava a redenção do western spaghetti, gênero do qual passava a ser o primeiro clássico, inspirado em "Yojimbo", de Akira Kurosawa. Clint Eastwood encarnava um pistoleiro solitário e caladão que chega a uma cidadezinha e participa da luta entre gangues, servindo ora a uma, ora a outra e levando ambas a destruição. De olho no mercado americano, o diretor, pela primeira e última vez, usou o pseudônimo de Bob Robertson. O grande ator Gian Maria Volonte era John Wells, e o autor das trilhas sonoras de Leone, Ennio Morricone, assinava Dan Savio.

Sérgio era filho de Vicenzo Leone, que, usando o nome de Roberto Roberti, dirigira filmes na época do cinema mudo. Começou como assistente de Vittorio de Sica em "Ladrões de bicicleta" (1948) e trabalhou com diretores americanos que filmaram na Itália—Robert Wise, William Wyler, Fred Zinnemann e Robert Aldrich. Foram 58 assistências de direção até dirigir dois épicos, em 1959 e 1960.

"Por um punhado de dólares" foi o primeiro de uma caprichada trilogia em homenagem ao faroeste e estrelada pelo então pouco conhecido Clint Eastwood. "Por uns dólares a mais" (1965) e "Três homens em conflito" (66) completaram o ciclo. Leone realizou ainda os antológicos "Era uma vez no Oeste" (68), com Henry Fonda e Charles Bronson; "Quando explode a vingança" (71), James Coburn e Rod Steiger. e "Era uma vez na América" (83), Robert de Niro e James Woods. O cineasta morreu de um ataque cardíaco em abril de 1989.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1964

Surge o gênio do cinema novo

Quando o baiano Glauber Rocha chegou ao Rio de Janeiro, trazia consigo, além de um modesto currículo como jornalista policial e cineasta provinciano, "uma idéia na cabeça e uma câmera na mão". Com essa escassa munição, conquistou toda uma geração de jovens intelectuais engajados já na estréia do seu primeiro projeto na cidade, "Deus e o diabo na terra do sol", deixando extasiada a platéia que superlotou o cinema Ópera, na Praia de Botafogo, em 10 de julho de 1964. Dois meses antes, estava no Festival de Cannes, juntamente com Nelson Pereira dos Santos, diretor de "\'idas secas", defendendo a estética da fome em que se baseava o recém criado Cinema Novo. Como "O pagador de promessas" fora premiado no ano anterior, não havia a menor possibilidade de Glauber Rocha trazer para o Brasil uma nova Palma de Ouro, mas lá seu filme ganhou dimensão internacional e foi alçado a condição de uma das obras-primas da cinematografia mundial. opinião compartilhada pelo espanhol Luís Bunuel e o alemão Fritz Lang.

Parte das virtudes de "Deus e o diabo" se deve a própria "impossibilidade de fazer um grande western", explicou ele. Antes de mais nada, Glauber sabia que o seu filme tinha um orçamento brasileiro, que o obrigou a aceitar, por exemplo, a queda de Rosa (Yoná Magalhães) na simbólica seqüência final, pois precisava devolver naquele dia o helicóptero que a produção conseguira emprestado. É antológico o resultado que ele obteve no duelo entre Antônio das Mortes (Maurício do Valle) e Corisco (Othon Bastos), ao longo do qual travavam diálogos metafóricos em torno de uma guerra de libertação no miserável sertão brasileiro. No entanto, parte da rica coreografia teve que ser criada porque Othon Bastos, que substituiu Antônio Lisboa às pressas, era muito menor do que Maurício do Valle e os dois não podiam ficar muito próximos. Com uma série de referências filosóficas e cinematográficas, Glauber narrava na tela a história do vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey), que, após se revoltar contra a opressão de um coronel, une-se a um grupo de fanáticos e em seguida aos cangaceiros liderados por Corisco.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1964

A essência sonora de John Coltrane

O saxofonista John Coltrane percorreu um tortuoso caminho até desembocar no álbum "A love supreme", no qual fez uma síntese das informações musicais que assimilou ao longo de sua trajetória, iniciada em meados da década de 1940 numa banda militar. Gravado em 1964, "A love supreme", tido como um dos grandes momentos da fecunda história do jazz, contém elementos das escolas pelas quais Trane (como era chamado) passou em seu processo de amadurecimento, como o virtuosismo do bebop de Dizzy Gillespie. o hardbop de Miles Davis e o lirismo de Thelonious Monk, com os quais trabalhou antes de ter sua própria banda, no final da década de 1950.

Coltrane teve problemas com álcool e drogas. Chegou a um ponto tal que não conseguia "ficar de pé a não ser quando tocava", como registrou lan Carr na biografia de Miles Davis, ao lado de quem começou a chamar a atenção da crítica especializada com os longos e furiosos solos, posteriormente chamados de .sheefs of sound (lençóis de som), que introduziu em "Round midnight", do pianista Thelonious Monk, em 1956. Mas o mesmo Miles Davis que Ihe abriu os caminhos para que se tornasse uma das mais importantes referencias do jazz a partir da década de 1960 não tinha paciência para os estragos que a droga estava fazendo na vida de Trane, tratando-o literalmente a socos e pontapés quando o via entorpecido de heroína, "A love supreme" e uma oferenda de Coltrane a Deus, em agradecimento por tê-lo libertado do vício.

O álbum começou a ser concebido em 1962, quando Coltrane aperfeiçoou, com o pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e o baixista Jimmy Garrison, um dos mais equilibrados quartetos da história do jazz. Ao longo dos anos, o saxofonista amadureceu uma nova Iinguagem musical, o free jazz, que chegou a ser comparada a um cachorro louco correndo atrás do próprio rabo. O primeiro marco dessa estética foi "My favorite things" (variação sobre o tema musical que ficou famoso em "A noviça rebelde"), de 1960, no qual Coltrane resgatou o esquecido sax soprano. Em seguida vieram trabalhos com o multiinstrumentista Eric Dolphy, outro precursor do free jazz. E ainda "Ballads", em que Coltrane fez leituras delicadas de standards como "Say it (Over and over again)" e "Nancy". "A love supreme" é uma suite arquitetada sobre quatro movimentos: "Acknowledgement-, "Resolution", "Pursuance" e "Psalm". Uma saga sonora que trata de busca e redenção. Foi mais ou menos assim com a própria vida de John Coltrane, interrompida em 1967, quando tinha 41 anos.

Fonte: O Globo - Texto integral